Subversos

Derrames cerebrais com vida própria

domingo, abril 25, 2004



Não despreze a Liberdade
Saiba mais sobre a Revolução dos Cravos

terça-feira, abril 20, 2004

Morte Suspensa



Temos assistido, com uma postura quase novelística, aos sucessivos raptos de estrangeiros no conflito iraquiano. Usamos aqui o termo conflito de uma maneira que, não deixando de ser manipuladora, traduz em si um erro de base. É óbvio que para todos os minimamente esclarecidos trata-se, sem sombra de qualquer dúvida, de uma guerra com cabeça tronco e membros pelos ares. Mas, pelos vistos, a básica comunicação social e a política de massacre da máquina de guerra ocidental prefere continuar a chamar à mesma guerra conflito, com a mesma lógica de se chamar incidente a um assassinato.
Mas, não nos perdendo mais neste enorme parêntesis da invisibilidade da palavra manipulada, temos assistido, no caso dos reféns, a um autêntico baile de nervos em torno da suposta morte suspensa. As pessoas parecem mais sensibilizadas em torno do que vai acontecer ou não, numa espécie de folhetim que se arrasta e arrasta cheio de suposições e negociações em torno do que parece inegociável-a retirada do Iraque de todos os opressores estrangeiros. Mas não, parece que até os mesmos raptores seguem uma óptica novelesca deixando a morte anunciada para um episódio seguinte. Não deixa de ser curioso eles utilizarem uma certa lógica selectiva em torno dos que vão ser, ou não, eliminados-não foi à toa que pouparam (para contar a história e, talvez, tornar-se mundialmente famoso) um jornalista francês e eliminaram um segurança italiano. Parecem seguir um padrão de comportamento específico, o que não deixa de ser curioso. Esta mesma lógica não é aplicada, em nenhuma condição, no caso das potências invasoras e lacaios que os seguem. Para eles a única lógica é apenas a eliminação do inimigo, do outro, do iraquiano-o que também não deixa de ser curioso, porque tornou-se particularmente visível que, tirando meia dúzia de interesseiros, acabam por não ter ninguém do seu lado. Talvez queiram reinar sobre os cadáveres, não sei. Criaram um fosso de estupidez em que o único sentido parece ser apenas o da eliminação contínua de todos aqueles que resistem e que recusam ter de fazer o papel de novos cães amestrados da democracia das granadas e da carne para fazer hamburgers-que tenta reduzir todos os povos (principalmente os não ocidentais) a um modelo específico facilmente reconhecido. Este mesmo modelo não busca a igualdade entre os povos, busca, antes de tudo, uma conversão a um sistema que sobrevive, única e apenas, na manutenção e no cavar do fosso cheio de cadáveres dos dominados, sob a sombra da pá ferrugenta daqueles que dominam.
Mas, pelos vistos. esta mesma guerra parece estar a dar um volte face. A mentalidade racista e eurocêntrica do espectador médio consegue dormir de sono tranquilo com as imagens de iraquianos mortos e sujeitos a tratamentos abjectos por parte dos soldados de Bush e dos seus lacaios-mesmo que sejam crianças a postura é pouco mais que um encolher de ombros impotente. No caso dos reféns isso não acontece, mesmo que quase nenhum tenha sido abatido, consegue causar nas pessoas um agudo sentimento de desconforto perante a iminência da morte. Da morte ocidental. Da morte branca. Da “nossa” morte.
Se era culpada a criança iraquiana que brincava na rua por que é seria inocente o funcionário italiano que lá trabalhava?
Se é apenas um jogo as regras têm de ser iguais. E este é apenas o jogo da morte suspensa e do peso e da responsabilidade que cada país tem pela vida de cada um dos seus cidadãos. É óbvio que todos os governos assassinos representados no Iraque preferiam mil vezes que cada um daqueles homens e mulheres tivesse sido abatido à queima roupa. Mas não, isso seria demasiado fácil e faz com que tenham de provar do seu próprio veneno-no fundo, os raptores fazem o mesmo que os estrangeiros fizeram quando exibiram as patéticas imagens do patético Hussein na televisão. A isto se chama combater o inimigo com as suas próprias armas e a guerrilha iraquiana parece ter aprendido bem a lição. Porque mais do que pela contagem de cadáveres as guerras ganham-se, principalmente, pelo jogo psicológico. E nisso a resistência iraquiana está a vencer. Obrigando os grandes senhores da guerra a negociarem acabam por dar uma grande lição àqueles que não o souberam nem o procuraram fazer. No caso destes últimos, mesmo que não o façam, são obrigados a fingir que o estão a fazer, provocando na cabeça dos carneiros que os elegeram a imagem de fraqueza e de perde de controle perante uma situação que nunca o teve.
Sendo assim, cada um de nós vai aguardando pelos próximos episódios, aguardando pelo novo desenlace em torno da morte suspensa.


Ricardo Mendonça Marques

sexta-feira, abril 16, 2004

Carne em Plástico




Vivemos num mundo em que o marketing venceu. A principal política de orientação desse mesmo marketing é a chamada estratégia virada para o
consumidor. Essa mesma estratégia baseia-se na definição de um perfil tipo de alvo de consumo que pode ser aplicado a cada um de nós. Esse modelo baseia-se na lógica pseudo politicamente correcta de que cada indivíduo é um ser único e que possui perfis específicos de comportamento e obediência (necessidades, para os mais ingénuos) que têm de ser satisfeitos. Para isso alimenta o mesmo jogo de caça ao rato, perseguindo esse mesmo alvo através dos diversos labirintos de orientação e desorientação humana. A internet é o mais fiel dos exemplos, mas está longe de ser o único.
O que se assiste cada vez mais é a consequente penetração, súbita e subliminar, dessa mesma lógica mercantilista no campo das relações humanas. As pessoas não questionam o âmago da interacção da vivência em conjunto, alimentam a mesma política egocêntrica das suas vidas privadas sentindo que, elas sim, realmente são diferentes. Mas é falso e redundante. O Narciso adormecido desperta da sua consciência sentindo que o espelho para onde olha o seu umbigo repelente é o único. Não se trata de, propriamente, questionar a distorção da imagem na qual ele se revê-porque entre a imagem e a carne e osso as diferenças esbatem-se- esquece-se, isso sim, como se alguma vez existisse lembrança, de que a única imagem que lá está espelhada é aquela que a sociedade constrói.
Desta maneira até mesmo a própria carne é moldada, transfigurando-se e transmudando-se para uma espécie de fóssil em vida.
Da mesma maneira que o marketing e a publicidade atingem o público tipo, mesmo que segmentado em classe e em género, o mesmo indivíduo mercantilizado-ou indivíduo enquanto mercadoria-sente que as suas escolhas pessoais, na sua vida pseudoprivada, são realmente as suas. Da mesma maneira, ao considerar-se um ser único, sente que a sua justificação pode ser apresentada em relação aos outros como se eles fossem uma qualquer espécie de objectos. Desta maneira o próprio campo dos afectos pode ser colocado em causa: Esta é a vida que eu escolhi! Esta é a minha cerveja! Este é o meu grupo! Esta é a mulher da minha vida! Este é o carro da minha vida! Este é o meu amigo! Exige-se fidelidade e obediência a uma pessoa da mesma maneira que se exige que um electrodoméstico esteja dentro da garantia. Este é o meu, esta é a minha... Mas não. A não ser que as pessoas tenham realmente dono.
E é verdade. Elas têm.
Questão: Num mundo em que os direitos de cidadania (que já são uma treta) são ultrapassados pelos direitos do consumo, qual a diferença entre pessoas e objectos?
Nenhuma, é claro. Sempre foi assim, mas a tendência é mesmo a gradual transformação da carne em plástico.

Ricardo Mendonça Marques

sexta-feira, abril 09, 2004

O atirador de Washington



O atirador de Washington foi mais um dos soberbos exemplos da sociedade norte-americana. Os excessos e os absurdos são as formas que os mais sensíveis encontram para se defender de meio tão adverso. Nos EUA as situações anómalas irrompem com normalidade e sofreguidão – há que fazer jus à urbanidade desmesurada. Com frequência assustadora a audácia e a originalidade de certos indivíduos suplanta, em muito, o universo dos mais criativos…
O que há a lamentar, no exímio atirador, são os alvos escolhidos. Um indivíduo tão dotado devia ser mais selectivo quanto às vítimas. Realmente é decepcionante desperdiçar tão excelente pontaria – é que podia se ter lembrado de rondar as imediações da Casa Branca... Com um pouco de sorte, não só eliminaria o que é dispensável como veria o seu sucesso e fama quadruplicados… Que melhores exemplos surjam… Isto porque não estou a ver o presidente Bush a tornar-se a alérgico, de um momento para o outro, ao oxigénio – o que é pena.

Luís F. Simões/Rascunho

Incógnita

tzing… a bala ricocheteia contra a
rocha. Acerta num pássaro que
trazia no bico a flor mais roxa

sais
a arma no coldre o coração num bolso roto
a serpente à volta do pescoço um colar de nojo
o mundo guardado em bocados num livro rasgado
rolam as lágrimas na cara dos outros e hoje…
um dia tão lindo para dar tiros nos
cornos mas não nos teus… é claro
para quê ir mais longe? a vítima já
morreu e hoje é dia dos santos
halloween numa versão mais soft

a arma no coldre o coração guardado num bolso
roto e seis balas de prata; billy the kid ou o
unforgiven num cavalo de nojo e
de negro apanhas o comboio dos duros
servem-te bourbon estás tonto ao terceiro copo
crianças rolam nos vidros
lágrimas tontas, felicidades e doces rastejam em
curvas soltas “um doce senhor ou uma travessura?” perguntam
sorris, mostras-lhes a pistola de bronze nenhuma estrela

a 120 à hora num cavalo de branco e de nojo

a vítima já morreu e o coração num bolso
roto, rasgado, presta-se a escorregar pelas pernas abaixo
dia dos mortos, halloween numa versão mais soft

chegas ao sítio marcado a 120 à hora
a cruz sobre a cruz o X no sítio marcado
o morto já morto que ainda pulsa sem pulso
o tempo foi ontem e do berço
ao caixão a distância… tudo o resto… retratos

entras negro entre negros véus e além
o X marcado no rosto o
fim da linha no rosto
“a ruga não crescerá para além do hoje” pensas
quando te preparas para enviar para longe a sombra
sentas-te, apontas a arma de seis balas de prata
quantas estrelas não chorarão por ti… hesitas
não! não irás mais longe… a ruga deve continuar

encontras como homem-santo o X que juraras matar
tantos anos tantas balas tantos seis de prata
encolhido e negro afastas-te para além
do negro avançando negro ao cavalo de nojo
imaginando tonto “… mas o teu deus pagará por ti!”
mas o céu que olhas não tem forma
“mais de seis balas” pensas
mais de seis balas…

segues em frente e num momento hesitas
irrompe-se uma sombra para além da tua que estaca
a teus olhos o X, o homem-santo sorri por entre
o fumo branco dos seus lábios
nas mãos um livro que abre e começa a ler
paras a ouvi-lo, baixas a arma
por trás o riso de crianças
“pai… profeta… deus… perdoa-me dos meus crimes!”
entregas-te, despes-te como se pudesses virar a página

não mais negro não mais nojo não mais prata

ele vira a página e além dela… sombras
das sombras a arma e então vês um enorme X
uma bala… um fim… um morto
tu morto e ele sorri e pensa
“bem… já que é dia dos mortos! ou halloween
em versão mais soft!”

algures por entre os vidros uma criança rola
o coração tão cheio o saco vazio mas…
o que é aquilo no chão?!
apanha do chão. serás tu um doce para mim
pergunta ela a um coração caído de um bolso roto
primeiro cheira depois prova e… não
é apenas mais uma maçã velha… do chão vem…
ao chão volta

tzing… a bala ricocheteia contra a rocha
acerta num pássaro que trazia no ventre
a flor mais frouxa

Ricardo Marques (1996/97)

Devaneio num espírito perturbado
(Zondergang in een verstoorde geest)

Talvez alguma coisa traga a coesão
entre ti e mim ao de cima –
mesmo que só recolhido no
arranjo de uma noção
de plástico e sintética – Faz frio.
Ficam teclas por tactear

Pensamentos pingam – como os salpicos de sangue
sobre este retrato – sem que jamais por mim,
ou até por ti, uma taça seja colocada
a apanhar o desperdício de talento, o mostruário
da despedida, depois levada à minha boca
e novamente posta a apanhar – por ti

Menno Postman 22-XI-1994 NL

quinta-feira, abril 08, 2004

(foi sepultado o último arquitecto de almas num atrito de
contemplação entre dois arquipélagos cujas latitudes
se desintegraram)

alguns fragmentos de quartzo convergiram no horizonte
dissipando um brilho no crepúsculo
propício para a meditação e para a ternura

ao abrigo do firmamento, o nativo despiu-se na orla
das nuvens, mergulhou na vertigem dos segredos
que povoam o ocaso

vulnerável à frescura da noite, não conseguiu conter
os fluxos de imaginário que escorriam pelo seu corpo e
fecundavam a terra de novos habitantes, novas cores
algumas arquitecturas proliferavam na paisagem,
projectavam almas esvoaçantes e sedentas de céu

o nativo, então, cerrou os dentes, quebrou as latitudes
terrestres e encerrou o seu corpo, num atrito de
contemplação entre dois arquipélagos
(os nossos corações desconhecedores do relógio biológico universal)

Gabriel Mendes (Gaby)

terça-feira, abril 06, 2004

No primeiro dia de aula a professora, para conhecer melhor os alunos, resolve perguntar a profissão do pai de cada um.
- Pedrinho, qual a profissão do seu pai?
- Advogado, professora.
- E a do seu pai Mariazinha?
- Engenheiro.
- E o seu Aninha?
- É médico.
- E o seu pai, Joãozinho, o que ele faz?
- Ele… ele… Ele é bicha…
- O quê?! – pergunta a professora com estupefacção.
- S’tora… Ele dança em discotecas, trajando uma tanga minúscula cheia de lantejoulas e brilhos, onde homens másculos lhe passam a mão e põem dinheiro no elástico da tanguinha e depois lhe vão ao cu e não lhe pagam…

A professora rapidamente dispensou toda a classe, excepto o Joãozinho…
Vai ter com o garoto e pergunta-lhe uma vez mais:
- Ouve lá, ó Joãozinho, o teu pai é realmente mariconço/bicha?
- Não, S’tora... Agora que a aula acabou, é mais fácil dizer a verdade: o meu pai é político, e eu tenho vergonha de contar aos outros…

Quem é que não compreende a vergonha do Joãozinho?!

sábado, abril 03, 2004

O Xamane Encarnado



O homem que cavalga serpentes é apenas uma visão
que guardo da infância

Caminha dentro do meu corpo
com o sol a incendiar-me o sangue
e uma sensação estranha de ser capaz de absorver o excesso de luz
que sobrou da origem da noite
da criação do mundo

O tempo confunde o seu nome
com o murmúrio imperceptível do meu corpo

É impossível deixar de ter medo quando sinto a boca transformar-se
numa flor de ópio
ou quando encosto o revólver ao peito
e descubro que não posso fugir para lugar nenhum

Enquanto fumo aprendo a dar côr às palavras
aprendo a arrancá-las do peito como um veneno seco de papoila
de que guardo a semente

Caminho dentro deste corpo que está dentro do meu
com uma vela a arder no coração
Caminho por um labirinto infernal onde o sangue abre veias
e faz esquecer que a nossa morte não deixará nenhum vestígio
e que a nossa vida não é mais do que um adiamento da nossa morte

José A M Pimenta

Demon para...



Ria a bom rir das palavras trágicas de um
diário velho Quando o demónio
que habitava o quarto parágrafo
Surgiu a meus olhos mais velho, mais gasto
mas ainda o mesmo A mesma altivez e impassividade
Esbofeteou-me a cara e riu
Disse então para si próprio "Vejam só quem voltou!"
Deixou-me aborrecido
mas estranhamente calmo continuei a ler
Ele deixou-se a um canto vendo fotografias velhas
"Nesta estou óptimo!" ainda o ouvi dizer
Entretanto a janela aberta o vento virou
ainda mais páginas para além da mesma e na terceira
pestana do olho esquerdo o fumo
do haxe rançoso que ele fumava feriu os meus olhos
"Importas-te de parar?", pedi-lhe delicadamente
ele riu Levantou-se da cadeira pousou os seus nos meus olhos
Irónico, sarcástico, disse-me então "Já te julgava Baudelaire ou então
o Fernand Braudel ou qualquer outro Da sociedade
global mas pelos vistos... é o que se vê!"
Abanou a cabeça e um leve esboço de sorriso
investiu contra mim como uma espada De sangue o
esboço cinzento de um filtro gelou-me os dedos
"Julgava-te morto!" e ele ainda mais alto se riu
"Nunca! Nevermore!" brincando com o destino de Poe
inquieto sorrateiro mas sempre ali Como o
Hobbes para o Calvin como o vibrador para a ninfomaníaca
como a serpente para a maçã como
um homem e um demónio se olham como o fumo
nos pedrava lentamente

Ricardo Marques

Lenda diabólica para sobre o sofá
(Duivels sprookje voor op de divan)

De profundas fendas cresceu a aldeia
Uma árvore plantada, de casa a casa,
entre si ligadas
Mas cada tronco conhecia o meu rosto fechado:
preferindo a vida escondida por trás da frieza

Ri, diziam-me eles, os homens da aldeia,
e foi isso que fiz
Eu ri e acreditaram-me,
deixando atrás a frieza estampada

Acaso na fecundação se traçou um rasto,
o nascimento duma nova morte talvez?
É que, quando surgiu detrás do meu riso,
nunca os homens da aldeia o viram

Menno Postman (26-XI-1992) NL

Memória

As águas perduram num rastro infindável
de sorrisos
de flores esquecidas
no deserto azul

Desenho no teu olhar
uma carícia de estrelas
que beijam o infinito da noite

Aqui e ali
uma memória de ecos inesgotáveis
Secretas referências a uma dúvida
que preenche os lugares onde me perco

As fissuras da pele
guardam um pó enferrujado,
uma serpente que desperta o cansaço
no desalento das pálpebras

O lugar do poema
está repleto de gestos, de gemidos
que fulguram no golpe de uma veia

A noite adormece sem lágrimas
Sobre a precaridade de um corpo volátil:
- o céu incendeia incertezas
de uma pólvora de cavalos inquietos,
galopando nos limites em que a vida cessa

E o maior engano
é esta eternidade de gelo:
- um vómito de luz, na suave asa do grito

Andréh (Jorge André)

Adormeceu quase intantaneamente
na fragmentação pálida da madrugada
Assobios transbordavam num distante buraco negro do cosmos
enquanto ele sonhava... e povoava
o céu crepuscular da alma
devastado pela loucura de outra paisagem
Leves, as visões pairavam no amanhecer do seu rosto:
trocavam-se olhares fluorescentes
por lábios violetas de vidro,
princesas provenientes do fim do arco-íris
por ilhas transparentes em âmbar dourado
Alguém estremeceu enquanto
ele bebia das suas mãos a seiva que ela
lhe emanava através das pupilas de água e tempo incerto
Depois, o sol rasgou os trópicos
pela vertigem da manhã, juntou as suas sombras
na magia das faces virgens de lágrimas
e fundiu-os na humidade terna dos seus lábios...

Raquel Justo

O último estilhaço de humidade
ardeu junto à palpitação das palavras
Foi então que o navio enfeitiçado pela maré
retrocedeu ao horizonte, onde o calor
do desassossego que move o homem não chega
e apenas um leve marulhar de ondas
devolve o equilíbrio ao estigma interior dos sonhos
Existe um farol intermitente que recolhe
as paisagens efémeras da noite
e deixa no escuro o mistério e a fantasia
das pupilas que mantêm virgem a poesia do espírito,
mas se escondem na ausência das estrelas... com medo
Se olhares fundo no espelho dos olhos
verás ainda o mar aceso
e o rasto do barco que se foi, sem leme nem bússola,
à deriva pelo mundo das miragens,
onde habitam os sonhadores e os loucos
No espectro da retina,
aperceber-te-às da tempestade escavada na pele,
do cheiro salgado da maresia, da areia macia,
onde um último estilhaço de humidade ardeu
e com ele um mar esgotado e doente se escoou
junto à palpitação das palavras

Gabriel Mendes (Gaby)

Estabelecida a dúvida
nas cinzas da religião
perdidos algures
entre Buda e Nietzsche
...

Acredito na benção
da primavera dos rostos
no código próprio do corpo
silêncio a pressupor a palavra
que se apruma e se expõe

Acredito naquilo
que me devolva ao riso

Paulo Barbosa

Posfácio

das entrelinhas
do teu pensar
escrevo as palavras que ditaste

pediram-me
que te pusesse um preço
mesmo sabendo que não o tinhas

... neste silêncio
ainda te oiço de um Junho
a gritar: "13 foi o meu dia"

José Fernando

Rosa vermelha
Rosa vermelha
Rosa vermelha

Eu,
levei-a
ao jardim das rosas vermelhas
e às suas tranças rebeldes
atei uma rosa vermelha
e deitei-me com ela enfim
sobre uma rosa vermelha

Agora
oiçam-me
pombos apaixonados sem destino
oiçam-me árvores inexperientes
e janelas cegas
debaixo do meu coração
e no fundo do meu ventre
cresce agora uma rosa vermelha
Vermelha
como um pôr-do-sol no Outono

Grávida
Grávida
Grávida

Mohsen Rostami

Alastra a teia da lassidão lenta
Agora lesta leve e longa a lava
Escorrega líquida ferve
A lassidão
A ideia derrete leve longa líquida
Ferve
O pensamento dissolve leve longo líquido
Alastra
A teia o sonho lento lúgubre louco
Corre escorrega solto
Sabe a pouco a pouco
louco

Lucília Raimundo

Na desnecessária residência do equilíbrio
não é o que vejo que é bonito

Luís F. Simões

Quando o relógio da vida
marcar a hora
encontrarás neste pequeno rascunho
marcas da minha presença

Pacheco Eduardo

Bom petisco

1
um poeta amador vagueava pela rua
e encontrou um poeta profissional

2
ah! ah! tenho um diploma! exclamou o poeta profissional

3
o poeta amador peidou-se

Carlos Ramos

A luz flui
sem destino, preenche a totalidade
travada, só pelo opaco
dominada só pelo ponto natalidade

Nem ela, a divina volubilidade,
é livre da sua origem

Manuel Pereira

Porcelana Chinesa

comprometidos no silêncio
exaustos de nadas
nem a solidão nos enxuga
da humidade fria
que nos toma as palavras

tudo não teria de ser assim
mas tudo enfim
reclama a morte
e nada há de mais fúnebre
que o silêncio

enuncio o teu nome
como se ele me trouxesse
à tua presença
e me devolvesse
a paz imaculada do teu nascimento

enuncio o teu nome
colo fragmento a fragmento

Jorge Rosete

sexta-feira, abril 02, 2004

M de máscara

Sobre a máscara em meu rosto
disseste-me um dia:
podias ter deixado a outra

ao que te respondi:
pois podia
mas esta tem mais a ver contigo

Luís F. Simões/Rascunho