Subversos

Derrames cerebrais com vida própria

terça-feira, maio 25, 2004

A prova subtil

Saber que nada há a perder nesta vida
que a seguir ao agora só há uma fila infinita
uma sequência contínua de mais agoras
Conhecer a fatalidade da existência aqui
o compasso do ar a encher o corpo
a doçura da água a purificá-lo
Ter a certeza de que ser já é lucro
porque um ínfimo detalhe na composição
de uma microinsignificância seria suficiente
para que o ser já não fosse ou fosse outra coisa
Alcançar com perfeita clareza que o bom e o mau
são só partes de uma totalidade cinzenta
e ainda assim
ter medo
sentir a respiração ofegar embaciando a noese
talvez aqui a prova
da animalidade humana

segunda-feira, maio 24, 2004

Ritual Cavernoso

Dedos doentios afagam a erva rasgadiça
sombras de gemidos contínuos vagueiam
a confiança nacional está em irmãs
que trabalham horas suplementares
até tombarem no Inferno
tombarem no Inferno
e vão rasgando o mato em bocados pequenos
e vão sentindo leves arranhões nas pontas dos dedos
e separando os talos que esses não queimam
não tombam tão bem
vá lá irmã
ninguém se quer deitar sóbrio
tomba tomba tomba no Inferno

terça-feira, maio 18, 2004

Criavidatividade

explode a rebentação fotográfica em tudo à volta
eu estava ligado a quilómetros dali
mas sentia o cheiro dos anjos na estratosfera
ao som dos banjos era capaz de tudo
tremexilicava os dedos e as coisas apareciam
fluíam para a realidade ao ritmo do caos
das ideias que jorravam gasolina em esperanto

segunda-feira, maio 10, 2004

Vive-se sobrevivendo ou só e apenas se existe...


A ideia de fim da história, ou de estado último de desenvolvimento\destruição\aniquilação\evolução morreu, mesmo enquanto história, muito mais enquanto fim. Os neo-paradigmas são iguais a quaisquer outros produtos- têm prazo de validade, foram feitos para saírem das prateleiras e se tornarem obsoletos. Morre a ideia de fim. Mas nunca existiu uma ideia de um começo válido-nunca Adão e Eva, nunca mesmo os macacos em cima dos galhos.
- Quando é que saíste de cima da árvore?
- Quando te vi rastejar debaixo da pedra.
Tudo é consequência de qualquer coisa, embora muito também não o seja. A própria frase contradiz-se. As palavras nunca chegam nem alcançam nada.
Vive-se sobrevivendo ou só e apenas se existe numa era\época\situação\momento que passa e se acumula por cima do entulho de cada segundo\minuto\hora firmamento chutado da eternidade que passa, mas em que a ideia de um fim último de desenvolvimento morreu. Se bem que as ideias deterministas sejam na sua maioria inócuas, porque reduzem as pessoas a meros actores sociais, negando a lógica individual de cada um-porque tentam controlar e domesticar o que não tem controle-não deixa de ser verdade que uma certa ideia de começo também começou (o começo também se começa!?) a diluir aos poucos. A sociedade tornou-se o próprio reflexo do imediato e do tempo ausente. Esta é a era do nada em que os actos e as consequências deixaram de ter um significado de peso porque, gradualmente, aquilo que poderia ter um real interesse (sentimentos, emoções, altruísmo) passou a ser apenas um estado passageiro segundo a lógica de qualquer sociedade consumista. Traduz, na maior parte dos casos, uma adulteração do espaço do Eu em relação ao Outro. E hoje em dia parece que só existe o Eu, não quero nem saber do Outro, não estou nem aí para os problemas dos Outros. Ora, sendo Eu feito de uma soma de tudo o que me rodeia, de tudo o que imaginei e de tudo o que me foi imposto, de todos os outros... com a minha negação... o que é que existe? Apenas uma chacina da lógica identitária, de um contínuo recalcar de memórias e de tempo, apenas o fim da continuidade histórica, apenas dissertações vagas como esta. Apenas o reflexo do tempo ausente que passa. A mesma sede do imediato ou do programar a vida numa espécie de lógica andróide, apenas a masturbação em cadeia de egos em coro, mas afastados uns dos outros e a lutarem pelo mesmo espaço. Apenas a lógica individualista da vida aqui e agora, a mesma lógica que condena e condenará sempre o dia de amanhã e de todos os seus rebentos ao mais completo planeta de cinzas, ou só e apenas às cinzas mas sem planeta algum. A mesma vida que aniquila o passado, que o retrata conforme os seus próprios interesses, que hipoteca o futuro porque já se postulou que ele já nem sequer existe.
A vida do Homem de hoje mata a vida do Homem de amanhã. Apenas um holocausto, tão igual a tantos outros.



Ricardo Mendonça Marques