Carne em Plástico
Vivemos num mundo em que o marketing venceu. A principal política de orientação desse mesmo marketing é a chamada estratégia virada para o
consumidor. Essa mesma estratégia baseia-se na definição de um perfil tipo de alvo de consumo que pode ser aplicado a cada um de nós. Esse modelo baseia-se na lógica pseudo politicamente correcta de que cada indivíduo é um ser único e que possui perfis específicos de comportamento e obediência (necessidades, para os mais ingénuos) que têm de ser satisfeitos. Para isso alimenta o mesmo jogo de caça ao rato, perseguindo esse mesmo alvo através dos diversos labirintos de orientação e desorientação humana. A internet é o mais fiel dos exemplos, mas está longe de ser o único.
O que se assiste cada vez mais é a consequente penetração, súbita e subliminar, dessa mesma lógica mercantilista no campo das relações humanas. As pessoas não questionam o âmago da interacção da vivência em conjunto, alimentam a mesma política egocêntrica das suas vidas privadas sentindo que, elas sim, realmente são diferentes. Mas é falso e redundante. O Narciso adormecido desperta da sua consciência sentindo que o espelho para onde olha o seu umbigo repelente é o único. Não se trata de, propriamente, questionar a distorção da imagem na qual ele se revê-porque entre a imagem e a carne e osso as diferenças esbatem-se- esquece-se, isso sim, como se alguma vez existisse lembrança, de que a única imagem que lá está espelhada é aquela que a sociedade constrói.
Desta maneira até mesmo a própria carne é moldada, transfigurando-se e transmudando-se para uma espécie de fóssil em vida.
Da mesma maneira que o marketing e a publicidade atingem o público tipo, mesmo que segmentado em classe e em género, o mesmo indivíduo mercantilizado-ou indivíduo enquanto mercadoria-sente que as suas escolhas pessoais, na sua vida pseudoprivada, são realmente as suas. Da mesma maneira, ao considerar-se um ser único, sente que a sua justificação pode ser apresentada em relação aos outros como se eles fossem uma qualquer espécie de objectos. Desta maneira o próprio campo dos afectos pode ser colocado em causa: Esta é a vida que eu escolhi! Esta é a minha cerveja! Este é o meu grupo! Esta é a mulher da minha vida! Este é o carro da minha vida! Este é o meu amigo! Exige-se fidelidade e obediência a uma pessoa da mesma maneira que se exige que um electrodoméstico esteja dentro da garantia. Este é o meu, esta é a minha... Mas não. A não ser que as pessoas tenham realmente dono.
E é verdade. Elas têm.
Questão: Num mundo em que os direitos de cidadania (que já são uma treta) são ultrapassados pelos direitos do consumo, qual a diferença entre pessoas e objectos?
Nenhuma, é claro. Sempre foi assim, mas a tendência é mesmo a gradual transformação da carne em plástico.
Ricardo Mendonça Marques
Vivemos num mundo em que o marketing venceu. A principal política de orientação desse mesmo marketing é a chamada estratégia virada para o
consumidor. Essa mesma estratégia baseia-se na definição de um perfil tipo de alvo de consumo que pode ser aplicado a cada um de nós. Esse modelo baseia-se na lógica pseudo politicamente correcta de que cada indivíduo é um ser único e que possui perfis específicos de comportamento e obediência (necessidades, para os mais ingénuos) que têm de ser satisfeitos. Para isso alimenta o mesmo jogo de caça ao rato, perseguindo esse mesmo alvo através dos diversos labirintos de orientação e desorientação humana. A internet é o mais fiel dos exemplos, mas está longe de ser o único.
O que se assiste cada vez mais é a consequente penetração, súbita e subliminar, dessa mesma lógica mercantilista no campo das relações humanas. As pessoas não questionam o âmago da interacção da vivência em conjunto, alimentam a mesma política egocêntrica das suas vidas privadas sentindo que, elas sim, realmente são diferentes. Mas é falso e redundante. O Narciso adormecido desperta da sua consciência sentindo que o espelho para onde olha o seu umbigo repelente é o único. Não se trata de, propriamente, questionar a distorção da imagem na qual ele se revê-porque entre a imagem e a carne e osso as diferenças esbatem-se- esquece-se, isso sim, como se alguma vez existisse lembrança, de que a única imagem que lá está espelhada é aquela que a sociedade constrói.
Desta maneira até mesmo a própria carne é moldada, transfigurando-se e transmudando-se para uma espécie de fóssil em vida.
Da mesma maneira que o marketing e a publicidade atingem o público tipo, mesmo que segmentado em classe e em género, o mesmo indivíduo mercantilizado-ou indivíduo enquanto mercadoria-sente que as suas escolhas pessoais, na sua vida pseudoprivada, são realmente as suas. Da mesma maneira, ao considerar-se um ser único, sente que a sua justificação pode ser apresentada em relação aos outros como se eles fossem uma qualquer espécie de objectos. Desta maneira o próprio campo dos afectos pode ser colocado em causa: Esta é a vida que eu escolhi! Esta é a minha cerveja! Este é o meu grupo! Esta é a mulher da minha vida! Este é o carro da minha vida! Este é o meu amigo! Exige-se fidelidade e obediência a uma pessoa da mesma maneira que se exige que um electrodoméstico esteja dentro da garantia. Este é o meu, esta é a minha... Mas não. A não ser que as pessoas tenham realmente dono.
E é verdade. Elas têm.
Questão: Num mundo em que os direitos de cidadania (que já são uma treta) são ultrapassados pelos direitos do consumo, qual a diferença entre pessoas e objectos?
Nenhuma, é claro. Sempre foi assim, mas a tendência é mesmo a gradual transformação da carne em plástico.
Ricardo Mendonça Marques
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home