Subversos

Derrames cerebrais com vida própria

quarta-feira, março 17, 2004

À boneca de olhar turvo



Fará duas décadas esta década
que um infinito de absurdo colidiu com o meu destino

Na encosta de uma serra
uma boneca fabricava impulsos até à insignificância,
transformava a criação em tédio e desespero,
enquanto a paixão e o amor passeavam indiferentes pelo mundo

Com frequência desmedida confessava estar apaixonada
até que durante um momento de insatisfação
um inevitável hiato deu-se e dela ouviu-se:
“Dê o mundo as voltas que der estarei sempre contigo.
Tenho a certeza que nos reencontraremos
Para sermos felizes.”

Como recusava o horrível silêncio da ternura que se afastava
e precisava de algo para lá do grotesco e do inútil
que se denomina e caracteriza ausência
arrastei-me cabisbaixo por entre aquela densa ramagem
apodrecida e lamacenta
levando dentro do meu ser resmas de palavras inúteis

À medida que avançava
sentia aprofundar os pés no mistério
na memória envelhecida, no simulacro,
enormes bocas brotaram sequiosas…
Num canto, ao fundo, junto a umas mãos diáfanas da virgindade,
a boneca envolvia-se num expressivo xaile
… nele escondia-se o resto de um sonho que caminhara comigo

Apesar da distância
foi possível reparar que os seus olhos se encontravam turvos
não lhe quis perguntar porquê
porque as respostas servem para tornar as “coisas” finitas

Luís F. Simões / Rascunho