Cidade em chamas
Eram chineses. Os quatro. O jovem anafado que, da calçada, gritava monossílabos indecifráveis mas que soavam como uma rajada de insultos; o casal que, da janela, do outro lado da rua, respondia no mesmo tom – ele, à frente, vibrando o punho erguido; ela, protegendo-se por detrás, menos vociferante, mas igualmente ruborizada – e a outra mulher que, na varanda ao lado, parecendo de todos a mais irada, silvava como uma sirene. À medida que eu ia caminhando, tentava imaginar...
Ao mesmo tempo, reparei na vocação cenográfica que o acaso tem: tão surreal pareceu o efeito provocado pelo curioso trabalho dos funcionários da companhia de gás - junto ao passeio, homens de fato-macaco azul-marinho enfiavam em buracos no asfalto tubos de cerca de quatro metros de altura, ao cimo dos quais ardia uma chama contínua, que conferia uma luz especial àquela cena, uma certa medievalidade. À medida que eu ia caminhando, tentava imaginar...
Ao mesmo tempo, notava como as pessoas da cidade que por ali transitavam àquela hora digeriam a actuação daquelas quatro personagens. Duvido que reparassem na excelência da encenação. As risotas e os pequenos comentários imbecis fizeram-me ver que afinal esses transeuntes eram, eles próprios, actores naquele palco, e que eu era, afinal, o único espectador. Por não querer deixar essa condição, não me detive... continuei a andar.
Mas, à medida que caminhava, ia imaginando que histórias colocaram ali aos berros aqueles quatro arrancados ao Império do Meio. Seria certamente uma desavença surgida de um negócio que causou prejuízo a algum deles. Ou, talvez houvesse uma trama amorosa por detrás daqueles ressentimentos. Mais provavelmente, a zaragata remontaria aos esquemas de clandestinidade que os trouxeram até ali... impossível saber ao certo.
Reparei que mais à frente havia outra mangueira espetada no solo, com uma labareda na ponta. Não quis parar para contemplar de forma mais cuidada aquela estranha noite, mas abrandei o passo ao ouvir interpelar-me uma voz rouca que parecia vir do chão. "Ei, amigo", disse o bêbado sentadeitado que descobri no passeio, em meio à treva urbana. "O que é que se passa que está p'alí tudo a arder?" Sem perceber ao certo ao que é que se referia, continuei o meu caminho, ignorando-o.
Ainda se ouviam ecos dos gritos amarelos quando fiz a curva para a rua do meu prédio.
Eram chineses. Os quatro. O jovem anafado que, da calçada, gritava monossílabos indecifráveis mas que soavam como uma rajada de insultos; o casal que, da janela, do outro lado da rua, respondia no mesmo tom – ele, à frente, vibrando o punho erguido; ela, protegendo-se por detrás, menos vociferante, mas igualmente ruborizada – e a outra mulher que, na varanda ao lado, parecendo de todos a mais irada, silvava como uma sirene. À medida que eu ia caminhando, tentava imaginar...
Ao mesmo tempo, reparei na vocação cenográfica que o acaso tem: tão surreal pareceu o efeito provocado pelo curioso trabalho dos funcionários da companhia de gás - junto ao passeio, homens de fato-macaco azul-marinho enfiavam em buracos no asfalto tubos de cerca de quatro metros de altura, ao cimo dos quais ardia uma chama contínua, que conferia uma luz especial àquela cena, uma certa medievalidade. À medida que eu ia caminhando, tentava imaginar...
Ao mesmo tempo, notava como as pessoas da cidade que por ali transitavam àquela hora digeriam a actuação daquelas quatro personagens. Duvido que reparassem na excelência da encenação. As risotas e os pequenos comentários imbecis fizeram-me ver que afinal esses transeuntes eram, eles próprios, actores naquele palco, e que eu era, afinal, o único espectador. Por não querer deixar essa condição, não me detive... continuei a andar.
Mas, à medida que caminhava, ia imaginando que histórias colocaram ali aos berros aqueles quatro arrancados ao Império do Meio. Seria certamente uma desavença surgida de um negócio que causou prejuízo a algum deles. Ou, talvez houvesse uma trama amorosa por detrás daqueles ressentimentos. Mais provavelmente, a zaragata remontaria aos esquemas de clandestinidade que os trouxeram até ali... impossível saber ao certo.
Reparei que mais à frente havia outra mangueira espetada no solo, com uma labareda na ponta. Não quis parar para contemplar de forma mais cuidada aquela estranha noite, mas abrandei o passo ao ouvir interpelar-me uma voz rouca que parecia vir do chão. "Ei, amigo", disse o bêbado sentadeitado que descobri no passeio, em meio à treva urbana. "O que é que se passa que está p'alí tudo a arder?" Sem perceber ao certo ao que é que se referia, continuei o meu caminho, ignorando-o.
Ainda se ouviam ecos dos gritos amarelos quando fiz a curva para a rua do meu prédio.
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